junho 18, 2010
Penas chinesas
Por José Saramago(*)
Meter uma lagosta viva em água a ferver e cozinhá-la ali é uma velha prática culinária no mundo ocidental. Parece que se a lagosta já for morta para o banho, o sabor final será diferente, para pior. Há também quem diga que a rubicunda cor vermelha com que o crustáceo sai da panela se deve justamente à altíssima temperatura da água. Não sei, falo por ouvir dizer, sou incapaz de estrelar convenientemente um ovo. Um dia vi num documentário como alimentam os frangos, como os matam e destroçam, e pouco me faltou para vomitar. E outro dia, que não se me apagou da memória, li numa revista um artigo sobre a utilidade dos coelhos nas fábricas de cosméticos, ficando a saber que as provas sobre qualquer possível irritação causada pelos ingredientes dos champús se fazem por aplicação directa nos olhos desses animais, segundo o estilo do negregado Dr. Morte, que injectava petróleo no coração das suas vítimas. Agora, uma curta notícia aparecida nos jornais informa-me de que, na China, as penas de aves destinadas a recheio de almofadas de dormir são arrancadas assim mesmo, ao vivo, depois limpas, desinfectadas e exportadas para delícia das sociedades civilizadas que sabem o que é bom e está na moda. Não comento, não vale a pena, estas penas bastam.
(*) José de Sousa Saramago (Azinhaga, Golegã, 16 de Novembro de 1922 — Lanzarote, 18 de Junho de 2010) foi um escritor, argumentista, jornalista, dramaturgo, contista, romancista e poeta português.
Foi galardoado com o Nobel de Literatura de 1998. Também ganhou o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa. Saramago é considerado o responsável pelo efectivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa.